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Publicação: 01/10/2007
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(J. Simões Lopes Neto) (continuação) - Eu sou a princesa moura encantada, trazida de outras terras por sobre um mar que os meus nunca sulcaram... Vim, e Anhangá-pitã transformou-me em teiniaguá de cabeça luminosa, que outros chamam o - carbúnculo - e temem e desejam, porque eu sou a rosa dos tesouros escondidos dentro da casca do mundo... Muitos têm me procurado com o peito somente cheio de torpeza, e eu lhes hei escapado das mãos ambicioneiras e dos olhos cobiçosos, relampejando desdenhosa o lume vermelho da minha cabeça transparente... Tu, não; tu não me procuraste ganoso... e eu subi ao teu encontro; e me bem trataste pondo água na guampa e trazendo mel fino para o meu sustento. Se quiseres, tu, todas as riquezas que eu sei, entrarei de novo na guampa e irás andando e me levarás onde eu te encaminhar, e serás senhor do muito; do mais, do tudo!... A teiniaguá que sabe dos tesouros, sou eu, mas sou também princesa moura... Sou jovem... sou formosa..., o meu corpo é rijo e não tocado!... E estava escrito que tu serias o meu par. Serás o meu par... se a cruz do teu rosário me não esconjurar... Senão, serás ligado ao meu flanco, para quando quebrado o encantamento, do sangue de nós ambos nascer uma nova gente, guapa e sábia, que nunca mais será vencida, porque terá todas as riquezas que eu sei e as que tu lhe carrearás por via dessas!... Se a cruz do teu rosário não me esconjurar... Sobre a cabeça da moura amarelejava nesse instante o crescente dos infiéis... E foi se adelgaçando no silêncio a cadência embalante da fala induzidora... A cruz do meu rosário... Fui passando as contas, apressado e atrevido, começando na primeira... e quando tenteei a última... e que entre as duas os meus dedos, formigando, deram com a Cruz do Salvador... fui levantando o Crucificado... bem em frente da bruxa, em salvatério... na altura do seu coração... na altura da sua garganta... da sua boca... na altura dos... E aí parou, porque olhos de amor, tão soberanos e cativos, em mil vidas de homem outros se não viram!... Parou... e a minha alma de cristão foi saindo de mim, como o sumo se aparta do bagaço, com o aroma sai da flor que vai apodrecendo... Cada noite era meu ninho o regaço da moura; mas, quando batia a alva, ela desaparecia ante a minha face cavada de olheiras... E crivado de pecados mortais, no adjutório da missa trocava os amém e todo me estortegava e doía quando o padre lançava a bênção sobre a gente ajoelhada, que rezava para alívio dos seus pobres pecados, que nem pecados eram, comparados com os meus... Uma noite ela quis misturar o mel do seu sustento com o vinho do santo sacrifício; e eu fui, busquei no altar o copo de ouro consagrado, todo lavorado de palmas e resplendores; e trouxe-o, transbordante, transbordando... De boca para boca, por lábios incendiados o passamos... E embebedados caímos, abraçados. Sol nado, despertei; estava cercado pelos santos padres. Eu, descomposto; no chão o copo, entornado; sobre o oratório, desdobrada, uma charpa de seda, lavrada de bordaduras exóticas, onde sobressaía uma meia-lua prendendo entre as aspas uma estrela... E acharam na canastra a guampa e no porongo o mel... e até no ar farejaram cheiro mulherengo... Nem tanto era preciso para ser logo jungido em manilhas de ferro. Afrontei o arrocho da tortura, entre ossos e carnes amachucadas e unhas e cabelos repuxadas. Dentro das paredes do segredo não havia gritos nem palavras grossas; os padres remordiam a minha alma, prometendo o inferno eterno e espremiam o meu arquejo decifrando uma confissão...; mas a minha boca não falou... não falou por senha firme da vontade, que não me palpitava confessar quem era ela e que era linda... E raivado entre dois amargos desesperos não atinava sair deles: se das riquezas, que eu queria só pra mim, se do seu amor, que eu não queria que fosse senão meu, inteiro e todo! Mas por senha da vontade a boca não falou. Fui sentenciado a morrer pela morte do garrote, que é infame; condenado fui por ter dado passo errado com bicho imundo, que era bicho e mulher moura, falsa, sedutora e feiticeira. No adro e no largo da igreja o povo ajoelhado batia nos peitos, clamando a morte do meu corpo e a misericórdia para a minha alma. O sino começou dobrando a finados. Trouxeram-me em braços, entre alabardas e lanças, e um cortejo moveu-se, compassando a gente d’armas, os santos padres, o carrasco e o povaréu. Dobrando a finados... dobrando a finados... Era por mim.
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